terça-feira, 30 de novembro de 2010

A paixão segundo G.H. - Clarisse linspctor

Romance com um enredo banal, mas considerado por muitos como o grande livro da autora. A personagem principal, ao fazer uma faxina, se depara com uma barata e a esmaga. Depois, numa espécie bárbara de ascese, decide provar da barata morta. Ao esmagar e comer a barata operou-se na mulher uma revelação. Ela estava numa rotina doméstica civilizada, entre filhos, afazeres domésticos e contas a pagar, e o inseto a lançou para fora do humano, deixando-a na borda do coração selvagem da vida. Esse desejo de encontrar o que resta do homem quando a linguagem se esgota, move, desde o início, a literatura da escritora. Mesmo sem ser um livro de inspiração religiosa, tem aspecto epifânico. No ato praticado, a protagonista comunga com o real e, ali, o divino, a força impessoal que nos move, se manifesta. E só depois desse ato, que desarruma toda a visão civilizada, G.H., a mulher, pode, enfim, se reconstruir.          
É um mergulho do interior da personagem-narradora, e não há propriamente história. G.H. busca , em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e amar. A obra nem começa nem termina; ela continua. A narradora e personagem do romance está em seu apartamento tomando café, como faz todos os dias. Dirige-se ao quarto da empregada, que acabara de deixar o emprego. Lá;vê subitamente uma barata, saindo de um armário. Este evento provoca-lhe uma náusea impressionante, mas ao mesmo tempo, é o motivador de uma longa difícil avaliação de sua própria existência, sempre resguardada, sempre muito acomodada. A visão da barata é o seu momento de iluminação após o qual já não é a mesma, já não é a criatura alienada que tomava café distraidamente em seu apartamento. Nesse momento, deflagra-se na narradora a consciência da solidão (tanto dela, quanto da barata). O nojo pelo inseto desafia-se assustadoramente: é preciso que ela se aproxime da barata,, toque na barata, e até (seria possível?) prove o sabor dá barata. Para regressar ao seu estado de um ser primitivo, selvagem - e por isso mais feliz- G.H. deve passar pela experiência de experimentar o gosto do inseto. Através da "provação" (que é a sua náusea física e existencial), G.H. estaria fazendo uma reviravolta em seu mundo condicionado e asséptico.
            A náusea, aqui tomada como "forma emocional violenta da angústia", é o momento que antecede a revelação, a epifania, e resulta da dolorosa sensação da fragilidade da condição humana. A paixão de G.H. pode ser biblicamente interpretada como sofrimento aludindo à Paixão de Cristo, narrada por Mateus, Marcos, Lucas e João. É comum a aproximação da obra de Clarice da corrente filosófica existencialista, especialmente do existencialismo literário-filosófico de Jean Paul Satre (1905-1981) Segundo a R, Sant'Ana, os romances e contos de Clarice percorrem essas quatro etapas: a personagem é disposta numa determinada situação cotidiana; prepara-se um evento que é pressentido discretamente; a epifania - ocorre o evento, que "ilumina" a vida; ocorre o desfecho, onde se considera a situação da vida da personagem, após o evento.




Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque Clarice por inteiro só os verdadeiramente íntimos conheceram e, ainda assim, com detalhes ciosamente protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.

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